No passado dia 9 de fevereiro, realizou-se no Vaticano uma conferência de imprensa dedicada à apresentação do documento “A Velhice: o nosso futuro. A condição dos idosos após a pandemia”, produzido pela Academia Pontifícia para a Vida.
Num contexto de pandemia que revelou a vulnerabilidade extrema em que se encontra esta franja cada vez mais significativa das populações do mundo desenvolvido, foram apresentadas várias intervenções que nos pareceram especialmente dignas de destaque e reflexão mais aprofundada.
Assim, começaremos por apresentar seguidamente uma delas, da autoria do Mons. Bruno-Marie Duffè, secretário do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral. Aproveitamos para lembrar que, por iniciativa do Papa Francisco, se irá celebrar este ano pela primeira vez o Dia Mundial dos Avós e dos Idosos, no dia 25 de Julho, véspera da Festa de São Joaquim e Santa Ana, avós de Jesus.
Na sua exortação apostólica Christus vivit, com que concluiu o Sínodo sobre os jovens, a fé e o discernimento, o Papa Francisco evoca o testemunho de um jovem participante do Sínodo proveniente das Ilhas Samoa.
Este jovem, afirma o Papa, fala da igreja como uma “piroga na qual os anciãos ajudam a manter o rumo interpretando a posição das estrelas e os jovens remam com vigor, sonhando com o que os espera mais longe” (Christus vivit n.201).
A bela comparação da Igreja a uma piroga pode igualmente ser aplicada à sociedade, pois se perdermos os conselhos dos anciãos para avançar nas águas turvas da nossa história corremos o risco de perder a memória — e, perdendo a memória, perdemos igualmente a esperança (cf. A Sabedoria do Tempo – dialogo com o Papa Francisco sobre as grandes questões da vida, sob a direção de Antonio Spadaro, Veneza, 2018) (Christus vivit n.196).
Os mais idosos são a nossa memória e, como tal, são, paradoxalmente, a nossa esperança. Se nos apoiamos na sua experiência e nas suas descobertas, poderemos prosseguir a aventura da história da humanidade. Pois é a memória que torna possível a esperança. O paradoxo reside em que os mais idosos estão sempre um passo à frente. Eles já passaram por onde nos encontramos. São eles que nos podem dizer qual o resultado de certas experiências que nós vivemos pela primeira vez.
Contudo, é evidente que cada ser vivo deve percorrer o seu próprio caminho, uma vez que, como afirma Santo Agostinho, «o caminho só existe porque tu o percorres». O caminho é, portanto, a parábola da existência humana. Mas nunca estamos sós neste caminho: os mais idosos podem aconselhar-nos e os mais novos podem encorajar-nos.
A cultura técnica, que coloca no centro do pensamento e da vida a eficácia imediata, conduz-nos frequentemente ao abondono dos mais idosos, considerados menos “produtivos”. Existem indústrias em que se é considerado “velho” aos cinquenta anos e substituído por alguém mais novo, mais “agressivo”… O individualismo, analisado pelo Papa Francisco na sua encíclica Fratelli Tutti enquanto pensamento de um mundo fechado e egocêntrico, participa nesta cultura em que não temos necessidade dos outros: não temos necessidade dos mais velhos nem dos que caminham mais lentamente. Nesta cultura, os idosos são, por definição, os “velhos”.
Daí resulta uma dupla consequência. Em primeiro lugar, os idosos, que deixam de participar diretamente nos processos de produção económica, já não são uma prioridade na nossa sociedade. Assim, em contexto de epidemia, apenas são tratados depois dos outros, os “produtivos”, embora sejam eles os mais frágeis. A ordem de acesso aos cuidados de urgência mostrou, mais de uma vez, que eles não podiam beneficiar das terapias de assistência respiratória. A outra vertente desta mesma consequência é a fratura dos laços entre as gerações. As crianças e os jovens deixam de se poder encontrar com os idosos, mantidos em rigoroso confinamento. Isto provocou por vezes problemas psicológicos em certas crianças e jovens que necessitavam de manter o contacto com os seus avós. Assim como muitos avós tinham necessidade de ver os seus netos, sob pena de morrer por causa de um outro virus, quem sabe mais grave: o abandono.
Assim, podemos dizer que esta crise sanitária trouxe para a ribalta um componente muito importante das relações sociais. A capacidade de superar o desafio da vida – as suas incógnitas e as suas alegrias – repousa, em parte, na inspiração própria do diálogo entre gerações. Um diálogo que pode ocorrer tanto pela palavra como pelo silêncio, como o desenho oferecido por uma criança que faz ainda sonhar o idoso. Enfim, pela ternura dos olhares que se cruzam e se encorajam.
Sonho e ternura. É disso mesmo que se trata. Se os idosos continuarem a sonhar, os mais jovens podem continuar a inventar. Se o olhar do idoso encoraja com ternura os projetos do mais jovem, ambos permanecerão na esperança que ultrapassa os medos. Assim, poderão cumprir-se as palavras do profeta Joel: “Os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão, os vossos anciãos terão sonhos” (Jo 3,1). Todos os pedagogos e pastores que levaram as crianças até aos idosos sabem que os mais novos jamais esqueceram esse encontro… com um camponês, um pescador, um artista, um inventor, um mendigo ou um religioso no seu mosteiro. Porque o idoso já só tem uma coisa a viver: oferecer o que descobriu da vida para que a criança tenha ainda – e para sempre – o gosto de descobrir e reinventar a própria vida.
Que guardaremos nós desta terrível experiência de uma doença que tocou todas as idades e todos os povos? Muitos, tendo passado pelo sofrimento da separação, reatarão, no seio das suas famílias, os laços de escuta e cuidado entre as gerações. Outros guardarão em si mesmos, no silêncio e na tristeza mais íntimos, a lamentação de não terem falado mais com os que partiram. Porém, todos nós podemos compreender que esta memória que transportam os mais idosos nos é oferecida na “fragilidade dos vasos de barro” de que nos fala São Paulo (2 Cor 4,7). Entre os tesouros da memória encontra-se, com efeito, a fé, recebida e oferecida: esse gosto pela vida eterna que começou há muito. Por isso, as gerações, unindo as mãos num gesto de afeto e partilha, oferecem uma à outra sonhos e sabedoria: uma esperança que não pode morrer porque é precisamente o dom de Deus.
Mons. Bruno-Marie Duffè
Secretário do Dicastério para o
Serviço do Desenvolvimento Humano Integral
Vaticano, 9 de fevereiro de 2021